A CASA DOS POETAS

Por Augusto Carlos Avelino Teixeira de Carvalho

“Sem sair da porta, pode-se conhecer o mundo; sem ver através da janela pode-se conhecer o Caminho do Céu.
Quanto mais longe saímos tanto menos conhecemos” (Trecho do “Tao Te Ching”, Lao Tse)


O que seria de uma sociedade sem a história das suas partes fundantes?
Nesse sentido, tornou-se comum se falar muito pouco sobre a nossa casa. A casa é a vida e a morte compartilhadas, por gerações, em ciclos entrelaçados de esperança e dor.
É nela onde repousam todos os afetos mais importantes no rosário longo do tempo.
A memória do mundo principia pelo lar.
Reunir fatos que por ali se passaram ajuda a compreender o que somos e o que será de todos nós.
A individualidade das experiências de vida, com a qual a casa de cada família se apresenta, é evidente. É ali que se vive, cada um, com a sua própria e intransferível trajetória.
O mosaico de cada família, a partir do relato das coisas que lhe foram significativas, ajuda a criar o painel da nossa sociedade.
Assim, aqui se apresenta a trama especial de uma casa, a Casa dos Poetas, a residência dos Avelinos.
É uma casa como tantas outras situadas na cidade de Macau, enfileirada, localizada na reta na rua da frente. O sobrado faz o mesmo no outro fronte, na Martins Ferreira, tendo um destaque maior, em razão da sua altura.
Feita com muito esmero, de pau a pique à alvenaria (pedras, tijolos, areia, barro e óleo de baleia). De acanhada choupana até onde a parede poderia chegar, em direção ao céu. De pequenina a possuidora de um sobrado e bem cumprida entre duas ruas.
De testemunha do fim do Império até o indefinido futuro.
Nela foi condecorado o Major Emídio, aquele que a forjou. E aí já se vão cinco gerações, contando com a de seu fundador.
Passou por muitos: fevereiros, vento leste, sol, maresia e até alguma chuva.
Em razão do insistente salitre e do conforto crescente dos seus habitantes, algumas paredes foram feitas e muitas outras refeitas, incontáveis vezes.
Muitas águas “correram” e escorreram no seu grande telhado. Do telhado para a bica e da bica para a imensa cisterna e dali para saciar as sedes.
Essa casa viu nascer e testemunhou a transformação do Grupo Escolar Duque de Caxias, local em que muitos dos seus moradores estudaram e várias mulheres trabalharam, como se ali fosse uma extensão do lar.
A Casa dos Avelinos também viu edificações vizinhas, várias, nascerem e serem demolidas e outras serem novamente erguidas. Acompanhou a transformação das ruas de aterro, depois em paralelepípedo e, por fim, em asfalto. 
Viu os fios de energia e de telefone serem estendidos em altos postes.
Testemunhou a passagens de numerosos animados blocos carnavalescos, desfiles cívicos e tristes cortejos fúnebres.
Lamparinas, lampiões, piracas, velas e candeeiros acenderam em incontáveis noites.
A Força e Luz deu a Galhardo e a "Cortinas de Veludo" a primazia de adiar o início da escuridão. Até definitivamente as chamas se apagarem e a luz elétrica continuamente alumiar o ambiente, com o advento da Paulo Afonso.
Na casa moraram crianças, algumas viraram anjos. Elas brincaram muito, explorando o seu enorme espaço em profunda felicidade. Transformaram-se em adultos de olhos marejados a cada canto observado. Alguns saíram, outros ficaram e outros voltaram, mas sempre saudosos da infância que já não voltava mais.
Muitas mulheres sonharam, cresceram e se tornaram professoras.
Muitos homens criaram asas maiores, porque a eles eram permitidos voos mais distantes. Muitos se casaram, cresceram e multiplicaram a família.
Muitos, mulheres e homens, tornaram-se velhos, arrastaram os pés até se deitarem ao inevitável ocaso. Olhavam para o telhado, às vezes em telhas acessas, às vezes no escuro, fitando absortos aquela parte da casa, tantas vezes cúmplices de sonhos passados.
  Muitas crianças da casa e de fora foram ali alfabetizadas e suas vidas para sempre foram transformadas.
Por ali passaram muitas pessoas ricas, em visitas curtas e pessoas pobres, em demoradas.
Rezava-se muito nos nichos em meditações solitárias e demoradas para se alcançar graças e se agradecer as que foram alcançadas. Em períodos de bonança havia muita comida na dispensa e o perfume característico das especiarias no ar se espalhava. Mas havia épocas de penúria que exigia esforço e parcimônia.
Muitas cartas eram recebidas e enviadas a muitos destinos para parentes e amigos.
Dali, através das imponentes janelas, alumbravam-se a paisagem e os passantes. Demoradas contemplações do cotidiano que impeliam muitos à escrita.
Por ali circularam muitos livros e todos eram tocados e lidos em parte e no todo. E, em razão desses livros, muita coisa era aprendida e ensinada.
Em algumas noites, mais animadas, podia se ouvir a melodia afinada do piano. Versos eram declamados, outros apenas recitados de diversos poetas. Havia espaço para todos: alguns poetas criavam sonetos alexandrinos, outros, modernos, por horas a fio, costurando palavra a palavra, cada estrofe, muitas vezes à luz de vela. Outros escreviam em papéis simples e recortavam pérolas escritas, muitas vezes, jogando-as pela janela, para sempre, infelizmente, deixando-as perdidas, levadas pelos ventos da rua na madrugada.
Muitos desses versos saíram da Casa. Alguns foram publicados, outros não. Alguns tomaram o coração de pessoas sensíveis, que apreciam o duro, sublime e misterioso ofício do poeta.
Mas, ainda assim, é pouco o que agora se diz. É apenas o início para se conhecer essa casa, a Casa dos Poetas. No entanto, é preferível dizer quase nada sobre si, mas procurar avivar no que se puder a sua identidade, do que a sua história ser sepultada em vida. Principia aqui o direto à Memória da Família Avelino, ligada e se confundindo, indistintamente, à própria cidade de Macau.